Seleções que gostaríamos de ver: Seleção do Pampa
O mundo inteiro sabe que ninguém joga futebol como o brasileiro. Os alemães têm uma fibra fora do comum, os italianos têm o melhor senso tático, os africanos são os mais rápidos e habilidosos e os latino-americanos são os mais malandros. Todos eles são muito bons em suas respectivas especialidades. A diferença é que nós, brasileiros, somos a mistura de tudo isso. A força do nosso futebol, como de nossa cultura, decorre justamente da presença das muitas etnias que compõem o nosso povo. Dos germânicos Dunga e Taffarel, gélidos e intrépidos comandantes que fariam inveja a Otto Von Bismarck, aos latino-americaníssimos Garrincha e Romário, o futebol brasileiro é a síntese sublime das maiores virtudes do futebol. A seleção de 70 tinha negros, mestiços e brancos. Descendentes de italianos (Félix, Piazza e Rivelino), portugueses (Brito, Clodoaldo, Gérson e Tostão), negros (Pelé e Everaldo) e mestiços de todos os anteriores (Carlos Alberto e Jairzinho),, cada um contribuindo com o que tinha de melhor.
Só que este futebol tem um adversário à altura. Não é a Inglaterra, nem a Alemanha, e nem a Argentina, que não incomoda ninguém há muito tempo. É o pampa. Não se trata de um país específico, e sim de um espaço geográfico sem fronteiras, de clima subtropical, maltratado pelo verão inclemente e a geada destruidora de lavouras, habitado por uma raça que não conhece o medo e a cara feia e se orgulha de jamais se dobrar diante do inimigo.
Para inaugurar a seção “Seleções que gostaríamos de ver” escolhemos jogadores que nasceram na mais pampeana das regiões, a fronteira entre Brasil e Uruguai ( as exceções são os que nasceram em Uruguaiana, que faz fronteira com a Argentina, mas é quase ao lado do Uruguai também). Ali habita a essência do gauchismo, o único lugar do mundo onde o portunhol adquriu o status de lingua. Tanto que ali, em Santana do Livramento, foi escrito o Martin Fierro, o épico gaúcho por excelência. O esquema é, naturalmente, uma retranca como nunca se viu: um 3-5-2 sem alas. Mesmo assim, a habilidade não é deixada de lado, ainda que devidamente cerceada pela garra gaudéria. Vamos a ela, portanto:
Eurico Lara (Uruguaiana) - O atleta símbolo do Grêmio. Conhecido como o “Índio de Uruguaiana”, media quase dois metros e morreu da maneira mais gloriosa possível para um gremista: depois de jogar um Grenal e vencê-lo, em 1935. Chegou a ser convocado para a seleção brasileira, mas não pôde se apresentar por ter de cumprir obrigações no exército. Seu nome está no hino do Grêmio.
Oscar Aguirregaray (Artigas) - Ídolo no Peñarol e no Inter de Porto Alegre, Aguirregaray foi um típico zagueiro uruguaio: forte como um touro, marcador implacável e violento quando necessário (sim, há momentos em que um zagueiro precisa apelar para a brutalidade), foi titular absoluto da Celeste nos anos 90. Nunca jogou Copa do Mundo porque teve o azar de destacar-se numa época em que o futebol uruguaio amargava uma das piores crises de sua história.
Joe Bizera (Artigas) - Um bom zagueiro do Peñarol que, atualmente, está no Cagliari, da Itália. Jogou a copa de 2002. Outro adepto das canelas quebradas, como convém ao viril futebol pampeano.
De León (Rivera) - Poucos encarnam tão bem o espírito fronteiriço quanto Hugo De León. Campeão Mundial, Continental e Nacional pelo Grêmio de Porto Alegre e pelo Nacional de Montevidéo, capitão da Celeste Olímpica durante muitos anos, um dos maiores zagueiros de um país produtor de zagueiros, De León tem uma parede recheada de troféus. Em campo, ostentava no semblante a força sóbria dos grandes caudilhos do pampa. Conta-se que Zico pedia desculpas sempre que cruzava o olhar com De León dentro de campo: “Desculpa aí, chefe, não quis olhar nos seus olhos. Eu não teria essa ousadia”, teria dito o Galinho. De León, sobranceiro e magnânimo, poupou-o do castigo. Segundo dizem, De León sorriu duas vezes na vida. A primeira, aos dois anos, quando Ponce De León, seu pai, fez uma cosquinha no seu pé direito. A segunda, e última, foi quando um repórter perguntou se ele jogaria no Inter.
Calvet (Bagé) - Outro atleta vencedor. Raul Donazar Calvet foi campeão do torneio mais importante do pampa - o campeonato gaúcho - pelo Grêmio de Porto Alegre e, para abrilhantar um pouquinho mais essa impecável carreira, foi bicampeão do mundo pelo Santos de Pelé.
Gessi (Uruguaiana) - Gessi surgiu nos anos 50. Era a época da bossa nova, de Juscelino Kubitschek, de Elvis Presley, dos galãs do cinema em preto e branco, do jazz, dos beatniks, da elegância blasé e dândi, enfim. Gessi era exatamente assim. Não gostava de jogar futebol - o fazia apenas por dinheiro, para pagar a faculdade de odontologia - e, por isso, não corria em campo: limitava-se a dar passes milimétricos para os atacantes e a driblar, sem sair do lugar, os seus marcadores. Tudo isso sem o menor esforço. Tudo isso entre uma baforada e outra da fumaça da cigarrilha. Tudo isso enquanto dirigia sorrisos encantadores para as moças da arquibancada do Estádio Olímpico. Uma delas chamava-se Elis Regina, que alimentou o sonho de casar com o craque até o fim da vida. Seu currículo espetacular não pára por aí: Gessi foi jogar na Bombonera contra o Boca um dia depois comemorar sua aprovação no vestibular de odontologia enchendo a cara. O Grêmio ganhou de 4 x 1. Quatro gols dele. Nunca o Boca Juniors havia perdido em casa para um time estrangeiro.
Rubem Páz (Artigas) - Um dos maiores meiocampistas da História do futebol uruguaio, ídolo do Inter de Porto Alegre, do Racing de Buenos Aires e do Peñarol, Rubem Paz era habilidoso, rápido e excelente cobrador de faltas. Seu apelido era “Charrua” - gentílico dos antigos habitantes do Uruguai - pelos seus traços físicos indígenas.
Pablo Bengoechea (Rivera) - Mítico meio-campista do Peñarol de Montevidéo, titular da seleção uruguaia na copa de 90, campeão da copa América de 1995, apelidado de “El Profesor” devido ao seu futebol técnico e inteligente. Até os 19 anos só falava portunhol e conservou um sotaque “abrasileirado” até hoje. Seu ídolo de infância era Paulo Roberto Falcão: atravessava a fronteira para assistir aos jogos do Inter contra o Grêmio Santanense, em Santana do Livramento, cidade brasileira vizinha da sua Rivera.
Branco (Bagé) - O último lateral-esquerdo da seleção brasileira. Depois de Branco, iniciou a era dos alas, dos ligeirinhos que prometem ir ao ataque e voltar para a defesa mas não voltam coisa nenhuma. Branco raramente ia: ficava como um cão de guarda na esquerda, fixo, esperando os pobres pontas adversários com os dentes cerrados. Já quando resolvia atacar, presenteava os goleiros adversários com um dos chutes mais fortes da história do futebol mundial. Que o diga Ed de Goeij, goleiro holandês fuzilado pelo canhotaço de Branco nas quartas de final da copa de 1994. Uma vez, antes de um jogo contra a Argentina (que, naquela época, não era essa reunião de nerds viciados em Winning Eleven, cantores de cumbia e velhotes decadentes que hoje vemos), perguntaram a ele se tinha medo do adversário. Sua resposta: “Tchê, eu não tenho medo de nada! Sou o Branco de Bagé!”.
Venancio Ramos (Artigas) - Grande atacante uruguaio, jogou duas copas do mundo (82 e 86), titularíssimo durante anos e anos do Peñarol de Montevidéo. Esse aí não dava pancada: recebia, mas nunca reclamou. Afinal, umas canelas quebradas são coisa do jogo. Rápido e muito técnico.
Chico (Uruguaiana) - O mais corajoso atacante do mundo. Apenas isso. Jogou a copa de 50 e disputou clássicos inesquecíveis contra os argentinos, que o odiavam tanto quanto ele os odiava. Antes de um Brasil x Argentina que decidiria o sul-americano de 1945, Chico ouviu de um jogador castelhano a seguinte ameaça:
- Nós vamos te matar! Não entra em campo!
Ao que ele, valente homem do pampa, respondeu:
- Ah,é? Então vão ter que me matar mesmo!
Chico apanhou muito, bateu muito, provocou argentinos , causou uma brigaçada durante a partida e foi recebido em Porto Alegre como herói nacional.